Por Silvia Noara
Eu tinha 16 anos quando meu avô faleceu. Foi a primeira vez que julguei ter perdido algo de valioso, embora eu viesse a me dar conta disso, de fato, anos mais tarde, de um modo que eu jamais poderia supor. Já não me lembro de como a notícia se verbalizou, do que pensei em vestir para o funeral ou de quem abracei primeiro, mas uma memória, em particular, veste cores e formas originais.
Estava parada diante de um quadro que informava os nomes dos falecidos velados, no momento, nas três ou quatro salas que se estendiam pelo corredor. Naquela noite, só havia o do meu avô: Silvio Antônio Paladino. Talvez tenha permanecido ali, de pé, com os braços cruzados, por alguns minutos. Relia o nome que havia inspirado o meu próprio, então olhava para os lados. Lia novamente nomes e sobrenome, devagar, verificando se cada letra estava correta. Até alguém se aproximar e colocar as mãos nos meus ombros.
As pessoas procuram rodear quem sofre sozinho, vigiar a imobilidade da face, das mãos estrelaçadas uma à outra, dos olhos voltados para dentro. Como rastros de pensamentos que escorrem para lugar algum, da relutância que morre lentamente. Teme-se a inércia. É melhor que chore.
Primeiro, meu avô me acostumou, quando bebê, a dormir com os pés livres – antes de se deitar, arrancava as meias com que as matriarcas da casa me envolviam com tanto afeto. Depois, acordou meus ouvidos para a música clássica, quando fechava a porta do quarto e, ao som alto, solitário, dançava com as mãos no ar, como se regesse uma orquestra. Outras vezes, tocava violino. E eu o observava pelo buraco da fechadura.
Mais tarde, ensinou-me a entrega absoluta da mente a um jogo de xadrez. Jogávamos após o jantar, geralmente. Às vezes, ele cochilava durante a minha indecisão, mas, quando abria os olhos, já sabia o que se passara no tabuleiro. Ele diria que consequências são fatos previsíveis quando a consciência recolhe as partes que, desatenta, vai deixando pelo chão.
Por alguns anos, quando adolescente, competi nos jogos escolares da cidade em que cresci, entre as poucas meninas da idade que vibravam ao rematar um xeque-mate. Tantos significados, papéis e hierarquia quando pouco disso se compreendia. Meu avô me acompanhava em todas as competições e, enquanto eu jogava, tomava uma distância razoável do limite permitido aos pais e treinadores aflitos – os únicos capazes de encarar uma partida de xadrez amadora, feminina e infanto-juvenil. Não queria pressionar.
Com os óculos repousados quase sobre a ponta do nariz, camisa de mangas curtas por dentro da calça de linho e mãos nos bolsos, ele permanecia em pé, o tempo todo. E, ainda que a vitória fosse minha, à confirmação da queda do rei, aproximava-se do tabuleiro, desconstruía a formação das peças e reproduzia os lances imperfeitos, para apontar os erros que eu havia cometido.
Essas são algumas das minhas melhores memórias.
Pouco tempo atrás, voltei à sepultura da família Caffaro – é o sobrenome de minha bisavó Gabriela, barrado nas certidões de nascimento das gerações seguintes (invenções da cultura patriarcal), que identifica o jazigo. Desde o enterro, eu havia estado lá por uma ou duas vezes. Parti sem dúvida, sem celular, protetor solar, almoço ou um plano para me lembrar de como encontrar a rua do mausoléu nos mais de 200 mil metros quadrados do Cemitério do Araçá (na Avenida Doutor Arnaldo, em São Paulo). O fato é que adiei o dilema até estacionar o carro, comprar um vaso de girassol – questionei-me, por um momento, se seria esse um presente alegre demais para os mortos – e atravessar o portão principal do cemitério, que estava quase deserto naquele domingo, por volta de duas da tarde.
Nunca entendi o que pode haver de perturbador em cemitérios. Afinal, se enterrar os mortos é a tentativa de conservar uma prova da vida que existiu, isentando a memória do encargo de única testemunha do passado, porque alguém haveria de evitá-los? Desde que um sujeito teve a ideia de associar saudade a arrependimento, natural a divino, fim a tristeza, morte a mórbido, quem gosta de cemitérios virou gótico. Isso que é distração.
Um tanto distraída eu estava, naquele domingo, com as obras de arte que adornam os túmulos do Araçá. Iniciei a caminhada sentindo a pele arder do sol sem transpirar. A memória enevoada ainda me serviu para reconhecer a primeira rua à direita, um corredor que parecia ter apenas começo. Depois disso, encobriu-se de vez. Continuei em frente e rapidamente desisti de contar as transversais que ficavam para trás. Só interrompi os passos quando senti o brinco da orelha direita cair no chão, após deslizar sobre a blusa fina de malha. Notei que estava em um cruzamento semelhante a todos os outros e, lamentando o gasto de energia desnecessário, agachei-me para recuperar o acessório.
Ao levantar a cabeça, de frente para a rua à esquerda, a primeira imagem em que meus olhos recaíram foi a de um jazigo-capela, do qual eu conseguia ver apenas a parede lateral, cerca de 30 ou 35 metros adiante, talvez. Em companhia do meu diálogo mental, pensei o quão improvável seria ter encontrado o que procurava. De qualquer forma, eu tinha que arriscar algum trajeto, antes que o calor fizesse derreter a minha pressão. Coloquei o brinco no bolso do shorts e segui, reconhecendo pouco a pouco as formas daquela construção, até que parei diante dela:“FAMÍLIA CAFFARO”.
Esses são os fatos. E ponto.
Outro fato irreparável é a placa pregada à direita da porta da capela, ao alto, com uma pequena e já lascada foto do meu avô e as datas que abreviam uma vida toda: ♦ 17 – 9 – 1931 / † 16 – 1 – 1998. Tão consistente quanto os marcos temporais é a fobia de dormir de meias, o esforço de manter pelo menos os pés, descalços, no chão, ou a sensação de que nunca mais estarei preparada para uma partida de xadrez. O som de violino sempre vai me fazer chorar. É fato. E então virá o esquecimento, junto à contemplação de tudo o que não se conhece.