Posts Marcados Com: Memória

A biografia e o desejo. A biografia e a responsabilidade. A biografia e o agora.

Quando a Biografias & Profecias nasceu, uma das suas propostas era que as pessoas conversassem em vida sobre suas histórias. Que um neto se interessasse pelo passado do seu avô quando este ainda estivesse vivo.

Recentemente, uma passagem me fez refletir como se, de repente, eu tivesse conversando comigo mesma sobre a minha biografia. Mesmo que não faça sentido para todos, arrisco a compartilhá-la por aqui.

Andava com o coração desencontrado, manhoso, pedindo umas coisas a Deus e, depois de uma reflexão profunda entre amigos, fui tomada por um clarão desconfortável nas ideias: há coisas que posso e devo pedir a Ele, há coisas que posso pedir a mentores ou a quem amo, mas há coisas que preciso pedir exclusivamente a mim. E só eu posso atender-me.

O que na minha história atrai a realidade que me encontro? Tantas sementes já frutificaram, tantas flores venho colhendo, mas ainda há mudas que não semeio, não rego, não podo e, claro, não colho. Por que recusar tais frutos? O que ganho e o quanto perco com isso? Do que sou merecedora?  Senti no âmago que merecimento vem da relação de entrega ao amor de Deus coladinho com o compromisso que sou capaz de assumir comigo para minha evolução como ser humano.

E aí aconteceu. Enquanto me paralisava nesse filosofar espiritual, mas também lamentoso e pidão, ao levantar os olhos, tive uma visão: uma senhora alta, esguia, de manto e capuz escuro se apresentava. Não dá para saber o dia, mas me vi frente a frente com ela e era sim a Morte. Trazia na mão… uma foice? Não! Trazia lápis, borracha, canetinhas, aquarela e papel.

Tomei um susto, mas não corri. Já a vi chegar em muitas histórias que acompanhei de perto. Olhei-a nos olhos e num fragmento de segundo, aprendi muito sobre a vida. Não é à toa que dizem que o bom morrer vem de um bom viver. Algo se transformou em mim.

Dei asas à imaginação e vislumbrei um novo encontro. Antes de mais nada, não há pressa. Nenhuma. Que fique bem claro. Mas quando chegar a hora, que eu possa receber bem essa dona, com seu papel e limites.

Não quero uma morte tomada ou invasiva, mas sim que ela se apresente num lindo diálogo. Juntas, eu e ela, vamos examinar, ponderar, rir e apontar o que fica e o que perdi a chance de realizar e nem chegou a ser. Que boas memórias mantenham meu nome sempre vivo por aí.

Que ela não me ameace e que eu não a desacate nem ofenda. Mas que em seu anúncio inevitável nós nos entrevistemos para seguirmos em parceria numa longa escrita, ilustração e edição. Quando o texto da vida estiver concluído, que ele tenha poesia. Entre fim e começo, ela me conduzirá a novos destinos, jardins, florestas e bibliotecas repletas de histórias familiares ou inéditas.

Neste além sem garantias, quero estar preparada para o que há de vir. Por onde começo? Assumindo responsabilidades frente ao que se apresenta e frente a mim. Quando? Agora, vivinha da silva. Agora e na hora de minha morte, amém!

Regina Rapacci

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A incerta certeza*

Por Frederico Boldrin F.

Dr. Heisenberg's Magic Mirror of Uncertainty, de Duane Michals, 1998.

Dr. Heisenberg’s Magic Mirror of Uncertainty, de Duane Michals, 1998.

Sabemos que aquele clichê de que a memória pode nos trair é verdadeiro. Além de não pensarmos de maneira cronológica tendemos a distorcer, mesmo que sem desejar, nossas velhas ou novas memórias. O escritor norueguês Karl Ove Knausgård, enorme sucesso em seu país e no mundo, narra em seis volumes – assim como Marcel Proust em Em busca do tempo perdido narra em sete – a história de sua vida. No 3° volume intitulado A Ilha da Infância, o autor mergulha em suas lembranças mais antigas de quando era uma criança em sua pequena cidade na Noruega. No começo do livro Knausgård diz que a lembrança é lançada por alguma coisa em direção ao vazio do esquecimento e que alguma coisa a distorce até torná-la irreconhecível. Para ele o que é lembrado de maneira correta jamais nos é dado a escolher.

O professor de neurociência da New York University, Pascal Wallisch poderia concordar com ele, já que afirma em uma matéria publicada no caderno Aliás, do jornal o Estado de S. Paulo, que não é surpresa o fato de que diferentes pessoas recriam o mundo exterior de diferentes maneiras. “O cérebro, em determinados momentos, está apenas supondo quando tenta perceber o mundo. Normalmente ele dispõe de informação para uma interpretação sem ambiguidade”.

Ao se escrever uma biografia, por exemplo, conseguimos identificar a importância de se ter diversos pontos de vista para construção da história. Sim, construção, já que nenhuma realidade física pode ser transportada para um texto com todas as suas complexidades. Essa construção é feita através de um mediador, no caso o escritor da história. Com diferentes pontos de vista sobre o mesmo personagem, ou o mesmo evento, conseguimos notar pontos em comum e assim a história pode ir se tornando cada vez mais próxima da realidade. É um processo de apuração jornalística, onde pesquisas e entrevistas podem nos dar boas respostas de como as coisas aconteceram. Lendo a autobiografia A Noite Da Arma do ex-colunista do New York Times David Carr, falecido em fevereiro de 2015, vemos o quanto a presença de diferentes pontos de vista é essencial.

Ao aprofundar suas investigações, Carr descobre que certos acontecimentos tiveram lugar apenas em sua cabeça, como na história que dá título ao livro, onde ele, após brigar com um amigo, vai até a casa dele para tirar satisfação. O amigo, assustado com o jeito truculento de David Carr, aparece com uma arma para espantá-lo. Quando o jornalista se reencontra com esse companheiro, anos depois do incidente, para entrevistá-lo no sentido de reconstruir o seu passado no livro, o amigo diz que quem estava com a arma não era ele, e sim Carr.

A construção de sua própria história pode ser muitas vezes transcendental; encontrar informações erradas que eram tidas como certas, ou certas que eram tidas como erradas, pode gerar um bom processo de análise ou até mesmo autoanálise, sempre em busca de melhorias, tanto para o biografado quanto para as pessoas ao seu redor.

* Artigo escrito a partir da dissertação para o Trabalho de Conclusão de Curso de Jornalismo que está em andamento e será apresentado ao final deste ano na Universidade Mackenzie. 

O escritor Karl Ove Knausgård.

O escritor Karl Ove Knausgård.

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Morte e Vida, Saudade

Por Regina Magalhães

Era ainda cedo quando eu estava na Alameda Santos e, mesmo com o carro em movimento, inconsequentemente resolvi olhar o Facebook no celular. Sincronicidade ou não, para minha surpresa havia uma mensagem postada há minutos por minha amiga Karen: No puedo hablar mucho solo decir que hoy se murio mi hija Nathalia de 8 anos, despues de tanta lucha su cuerpo no aguanto y se murio como los angelitos, durmiendo. Se fue mi reina, mi amor y estoy segura que ella sera feliz ahora y descansara en paz. Gracias a todos los amigos que nos ayudaron todos esos anos de lucha. Estais en nuestros corazones y Nathalia lo sabe. Mi amor por ella sera eterno.

Meu coração disparou e imediatamente comecei a chorar, sentindo-me impotente e desejando estar ao lado de Karen e seu marido Javier, da pequena Sofia, de Dona Pilar e Seu Jovino – os avós. Por que não liguei mais? Por que não lhe escrevi sempre? Fui tomada por dor e culpa.

Tudo que pude fazer foi deixar-lhe uma resposta. Quis cancelar meu dia, deixar a vida de lado e, antes de me desmantelar com aquela notícia, uma enxurrada de lembranças invadiu minha mente.

Antes de Nathy vir ao mundo, pude ver o barrigão de sua mãe, quando estive em Oviedo para me recuperar do Caminho de Santiago, em 2004. Dormi no seu futuro quartinho e ansiosamente esperava a notícia da sua chegada, quando eu já estava de volta ao Brasil.

Então, ela nasceu e foi diagnosticada por uma sofrível doença. Os médicos a desenganaram, o padre do hospital já falava em extrema unção. Batizaram-na às pressas, vestindo-a com o um precioso vestido amarelo que pulsava o quão carinhosamente tinha sido feito pela madrinha de Karen. Quando sua morte parecia uma certeza, a pequena surpreendeu a todos, tirando ela mesma seu respirador e sobrevivendo. Começava aí uma história de amor e luta pela vida.

Quando Nathy foi para casa com seus pais, a relação de mãe e filha era a de um anjo cuidando de outro. Nunca ouvi Karen se lamentar. Nunca. Sempre a vi sorrindo. Sempre a vi conversando com a filha e captando suas respostas, apesar do silêncio. Karen abraçou a maternidade com leveza, alegria e com uma força interna esplendorosa para carregar os pianos da alma. De todas as mulheres que conheço, ela é um dos exemplos mais vivos de amor e, por isso, coragem.

Conheci uma criança muito maior que sua doença ou que seu limitado corpinho. A primeira vez que segurei Nathalia nos braços, ela suspirou e me apaixonei de vez. Ela irradiava uma luz especial e todos ao seu redor lhe deixavam brilhar. Ela refletia a luz do amor de seus pais. Sua boquinha e seu cabelo cacheado davam-lhe um ar de bonequinha. Não era raro alguém estranhar e se constranger com o modo que Karen e Javier a apresentavam ao mundo. Nunca sucumbiram à doença. Nathy ia a todos os lugares, passeava, viajava e ia para a sua escola.

Estava sempre impecável. Seu banho era um ritual que dava gosto presenciar. Primeiro porque algo em sua expressão mudava, relaxava, quando ela era colocada na água. Segundo, pelo banho de cremes, toques e cuidados que Karen amorosamente lhe aplicava. Depois, o penteado, a fivelinha… Cenas de amor que não consigo esquecer.

As complicações eram muitas e a desesperança dos médicos, imensa. Karen percebeu que não eram os doutores que decidiriam sobre o momento de passagem de sua filha, mas a própria Nathalia saberia sua hora.

Oito anos se passaram desde que Nathy chegou ao mundo e no dia 13 de novembro de 2012, ela faleceu dormindo, em casa, como um anjinho. Por mais que esperássemos que isso acontecesse um dia (como acontecerá com todos nós), a notícia da sua partida deixa uma enorme saudade.

Querida, você me trouxe muitas lições e agora vive no coração de todos que a amaram, viveremos uma saudade compartilhada. Só posso reverenciar a vida por poder conhecê-la e ter sua mãe como grande amiga.

Assim, fui tomada por amor e gratidão. Enxuguei as lágrimas, encarei meu dia e segui firme para continuar contando histórias de vida, mesmo que a morte faça parte delas.

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Nascença

Fred Linardi

Ao descer pela rua depois de sair de um ônibus que me deixou na Avenida Santo Amaro, na altura da Vila Olímpia, caminhei pelo trecho de volta para casa remoendo dezenas de ideias que passavam pela minha cabeça. Não conseguia entender minha indignação. Afinal, sair do interior para morar em São Paulo era para causar a inveja em muitos. Só que, naquela primeira semana de agosto, nada sinalizava que a experiência seria tão prazerosa quanto aparentava.

Era o ano de 2001 e minha vida começava a mudar, mesmo sem que eu percebesse com clareza. Havia passado no vestibular de jornalismo do Mackenzie. Meu pai vibrou com a ideia do caçula morar em São Paulo. Meu irmão mais velho, Luciano, já estava por aqui há uns meses. Com minha vinda, dividiríamos o apartamento de um prédio que ficava perto de onde ele estudava (e a 10 quilômetros da minha faculdade). Eu, com menos de um ano de experiência no volante, vim para São Paulo sem cogitar em dirigir pelo labirinto de ruas ocupadas por motoristas loucos e irresponsáveis.

As proporções da cidade me fascinavam. Tudo era imenso, os prédios diferentões, as pessoas… se via de tudo na rua. Se via de tudo também no penoso trajeto que eu teria que fazer diariamente, de pé, na linha de ônibus que ia do Terminal Santo Amaro para o Terminal Princesa Isabel. O itinerário sugeria que todos, sem exceção, chegariam a seus destinos realmente em fase terminal. Era difícil encontrar espaço para simplesmente entrar no coletivo. E, no meu ponto de descer – mais ou menos no meio do percurso – era difícil sair para a calçada libertadora. Era inconcebível para alguém do interior a ideia de levar mais que 15 minutos para fazer um percurso de 10 quilômetros. E eu no ônibus, de pé.

Na primeira semana de aula tivemos que ler um texto chamado O acaso dos nossos encontros seria determinado? – um capítulo de um livro chamado Os alimentos do afeto. E eu só pensava que diabo fazia numa metrópole, onde as pessoas pareciam não se encontrar, apesar de dividirem espaços de forma tão invasiva.

Depois de ser jogado para fora do ônibus, descer a rua ruminando pensamentos negativos, cheguei em casa e deitei na cama atônito. As perspectivas não tinham graça. Fazia tempo que eu não chorava. Talvez por aquele motivo até fosse a primeira vez. Não sentira isso nem mesmo quando passei onze meses fazendo intercâmbio, longe de todos que levei 17 anos para conhecer. A impressão que tive ao mudar para a capital foi a de ter tudo e nada ao mesmo tempo. A proximidade e a distância. Nunca me sentira tão isolado, mesmo estando apenas pouco mais de 100 quilômetros da minha cidade. A presença e ausência. Meus amigos pareciam estar para trás. E, de certa forma, ficaram. Foi difícil de entender, mas voltar seria algo insensato.

Hoje, ao olhar pela janela do meu escritório, no apartamento onde moro, ainda em São Paulo, vejo o cenário vibrando com o movimento lá fora. A cidade que pulsa trabalho tem sido assim há décadas, mas quando a vejo através do vidro, me remete aos últimos onze anos que se passaram, o tempo que assistiu à minha chegada nesta cidade que, apesar dos pesares, não me deixa partir. Minhas inquietações ainda existem, mas – ainda bem – não são mais as mesmas.

As vistas das janelas também mudaram. Saí da Vila Olímpia para um simpático prédio na Rua Bela Cintra. Passei a segunda metade da faculdade indo às aulas a pé, sentindo-me o mais privilegiado dos seres por este motivo. Até que, no último semestre, constatei que as coisas faziam sentido nas situações mais absurdas, quando conheci minha futura namorada, hoje já minha esposa, pela janela do meu quarto. Eu, do bloco B, acenei para uma garota de um dos apartamentos do bloco A. Ela respondeu e foi assim que outra história começou. Hoje nossa narrativa continua em outro prédio. Dividimos o mesmo espaço, que nos oferece outra vista.

Dentro de casa, escrevo meus textos para os livros e algumas revistas. A janela é outra. A cidade é a mesma. Depois de tantos anos, sei que fugir disso tudo não seria a solução. As andanças não entendem o que é uma fuga, pois se fugimos para por o fim numa história, acabamos construímos novos pontos de partida.

É uma sorte para todos nós os ângulos se mudarem, as histórias se fazerem e os encontros, de fato, se concretizarem. Estaria tudo determinado?

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Sobre datas e renúncias

Por Silvia Noara

Eu tinha 16 anos quando meu avô faleceu. Foi a primeira vez que julguei ter perdido algo de valioso, embora eu viesse a me dar conta disso, de fato, anos mais tarde, de um modo que eu jamais poderia supor. Já não me lembro de como a notícia se verbalizou, do que pensei em vestir para o funeral ou de quem abracei primeiro, mas uma memória, em particular, veste cores e formas originais.

Estava parada diante de um quadro que informava os nomes dos falecidos velados, no momento, nas três ou quatro salas que se estendiam pelo corredor. Naquela noite, só havia o do meu avô: Silvio Antônio Paladino. Talvez tenha permanecido ali, de pé, com os braços cruzados, por alguns minutos. Relia o nome que havia inspirado o meu próprio, então olhava para os lados. Lia novamente nomes e sobrenome, devagar, verificando se cada letra estava correta. Até alguém se aproximar e colocar as mãos nos meus ombros.

As pessoas procuram rodear quem sofre sozinho, vigiar a imobilidade da face, das mãos estrelaçadas uma à outra, dos olhos voltados para dentro. Como rastros de pensamentos que escorrem para lugar algum, da relutância que morre lentamente. Teme-se a inércia. É melhor que chore.

Primeiro, meu avô me acostumou, quando bebê, a dormir com os pés livres – antes de se deitar, arrancava as meias com que as matriarcas da casa me envolviam com tanto afeto. Depois, acordou meus ouvidos para a música clássica, quando fechava a porta do quarto e, ao som alto, solitário, dançava com as mãos no ar, como se regesse uma orquestra. Outras vezes, tocava violino. E eu o observava pelo buraco da fechadura.

Mais tarde, ensinou-me a entrega absoluta da mente a um jogo de xadrez. Jogávamos após o jantar, geralmente. Às vezes, ele cochilava durante a minha indecisão, mas, quando abria os olhos, já sabia o que se passara no tabuleiro. Ele diria que consequências são fatos previsíveis quando a consciência recolhe as partes que, desatenta, vai deixando pelo chão.

Por alguns anos, quando adolescente, competi nos jogos escolares da cidade em que cresci, entre as poucas meninas da idade que vibravam ao rematar um xeque-mate. Tantos significados, papéis e hierarquia quando pouco disso se compreendia. Meu avô me acompanhava em todas as competições e, enquanto eu jogava, tomava uma distância razoável do limite permitido aos pais e treinadores aflitos – os únicos capazes de encarar uma partida de xadrez amadora, feminina e infanto-juvenil. Não queria pressionar.

Com os óculos repousados quase sobre a ponta do nariz, camisa de mangas curtas por dentro da calça de linho e mãos nos bolsos, ele permanecia em pé, o tempo todo. E, ainda que a vitória fosse minha, à confirmação da queda do rei, aproximava-se do tabuleiro, desconstruía a formação das peças e reproduzia os lances imperfeitos, para apontar os erros que eu havia cometido.

Essas são algumas das minhas melhores memórias.

Pouco tempo atrás, voltei à sepultura da família Caffaro – é o sobrenome de minha bisavó Gabriela, barrado nas certidões de nascimento das gerações seguintes (invenções da cultura patriarcal), que identifica o jazigo. Desde o enterro, eu havia estado lá por uma ou duas vezes. Parti sem dúvida, sem celular, protetor solar, almoço ou um plano para me lembrar de como encontrar a rua do mausoléu nos mais de 200 mil metros quadrados do Cemitério do Araçá (na Avenida Doutor Arnaldo, em São Paulo). O fato é que adiei o dilema até estacionar o carro, comprar um vaso de girassol – questionei-me, por um momento, se seria esse um presente alegre demais para os mortos – e atravessar o portão principal do cemitério, que estava quase deserto naquele domingo, por volta de duas da tarde.

Nunca entendi o que pode haver de perturbador em cemitérios. Afinal, se enterrar os mortos é a tentativa de conservar uma prova da vida que existiu, isentando a memória do encargo de única testemunha do passado, porque alguém haveria de evitá-los? Desde que um sujeito teve a ideia de associar saudade a arrependimento, natural a divino, fim a tristeza, morte a mórbido, quem gosta de cemitérios virou gótico. Isso que é distração.

Um tanto distraída eu estava, naquele domingo, com as obras de arte que adornam os túmulos do Araçá. Iniciei a caminhada sentindo a pele arder do sol sem transpirar. A memória enevoada ainda me serviu para reconhecer a primeira rua à direita, um corredor que parecia ter apenas começo. Depois disso, encobriu-se de vez. Continuei em frente e rapidamente desisti de contar as transversais que ficavam para trás. Só interrompi os passos quando senti o brinco da orelha direita cair no chão, após deslizar sobre a blusa fina de malha. Notei que estava em um cruzamento semelhante a todos os outros e, lamentando o gasto de energia desnecessário, agachei-me para recuperar o acessório.

Ao levantar a cabeça, de frente para a rua à esquerda, a primeira imagem em que meus olhos recaíram foi a de um jazigo-capela, do qual eu conseguia ver apenas a parede lateral, cerca de 30 ou 35 metros adiante, talvez. Em companhia do meu diálogo mental, pensei o quão improvável seria ter encontrado o que procurava. De qualquer forma, eu tinha que arriscar algum trajeto, antes que o calor fizesse derreter a minha pressão. Coloquei o brinco no bolso do shorts e segui, reconhecendo pouco a pouco as formas daquela construção, até que parei diante dela:“FAMÍLIA CAFFARO”.

Esses são os fatos. E ponto.

Outro fato irreparável é a placa pregada à direita da porta da capela, ao alto, com uma pequena e já lascada foto do meu avô e as datas que abreviam uma vida toda: ♦ 17 – 9 – 1931 / † 16 – 1 – 1998. Tão consistente quanto os marcos temporais é a fobia de dormir de meias, o esforço de manter pelo menos os pés, descalços, no chão, ou a sensação de que nunca mais estarei preparada para uma partida de xadrez. O som de violino sempre vai me fazer chorar. É fato. E então virá o esquecimento, junto à contemplação de tudo o que não se conhece.

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