Por Fred Linardi
Poucos turistas que chegam à estação de trem da cidade de Rennes, na França, ultrapassam os limites da praça que contorna sua frente. De fato, a maioria deles sai pela porta principal, viram à direita e caminham até a entrada da rodoviária tão moderna quanto a ferroviária. É de lá que saem ônibus para cidades com maiores apelos, como a mística Mont Saint-Michel e a praiana e fortificada Saint-Malo.
Enquanto esse vai e vem de malas e mochilas tecem a pequena rota do trem para o ônibus, a avenida Jean Janvrier é caminho para os moradores, estudantes e outros poucos viajantes que resolvem pernoitar nesta cidade que quase nos faz esquecer que ela é a capital do estado da Bretanha. Apesar dessa importância, seus superlativos se escondem por trás do ambiente, do relativo silêncio e da aparente calma dos transeuntes.
Após deixarmos as malas num hotel nesta mesma avenida, seguimos adiante, em direção ao centro da cidade. Em menos de um quilômetro passamos pelo moderno Teatro Nacional da Bretanha, o prédio do canal de televisão, uma escola pública, além de vários restaurantes. Em menos de um quilômetro de caminhada, na outra direção, a Avenida é confrontada por um prédio do século 17 que fica logo atrás do belo jardim Saint-Georges e seu verde da grama e o colorido das flores. Perto dele, do outro lado do canal margeado de jardineiras, está o Museu de Belas Artes.
Mas Rennes continua parecendo ser mais aquém de tudo isso, mantendo-se quieta. Sua cor é cinza, não por trazer melancolia, mas sim pelos telhados e paredes de pedras que erguem muitas de suas casas e prédios antigos, além do céu tipicamente encoberto. As ruas do centro da cidade, que conservam seus paralelepípedos, compõem um cenário identificado por qualquer um que conheça ao menos um conto de fadas: as vitrines daqui mostram que estamos no estado francês cujas histórias e lendas mergulham no mundo dos elfos, fadas e cavaleiros das cruzadas. Os livros, as camisetas, os artesanatos e as decorações não poupam detalhes que lembram a cultura celta.
Se voltássemos pelo menos dois séculos atrás, todo o cenário de Rennes faria ainda mais sentido. Ao som de flautas com músicas medievais e iluminação a qualquer combustível de fogo, este centro seria quase igual. Inclusive com alguns tipos estranhos que passam de quando em quando pelas ruas. São pessoas que fogem da harmonia visual e me desafiam a pensar onde vivem e para onde seguem. Uma senhora passa falando sozinha pela rua, um senhor com roupas estilo cowboy numa das bancas de livros na praça, um possível assistente do pároco com ares de atraso mental entrando imponente por uma pesada porta de madeira das grandes igrejas góticas, além de diversos pedintes acompanhados de seus cães – traços de que a cidade é maior do que este pequeno centro que nossos pés alcançam, e que já não oferece mais espaço para todos que nela vivem.
Os ares medievais confrontam a modernidade e o relativo agito europeu. Além das mais de dez igrejas e catedrais em raios de poucos quilômetros de distância, é neste centro que estão o Parlamento e a prefeitura, que fica diante da Ópera, separadas por uma praça com um carrossel. Um moderno prédio abriga a biblioteca municipal, o museu de história bretã, um museu da ciência e o planetário. Perto do belo Parque do Thabor está a Universidade de Rennes, responsável por movimentar a partir de quinta-feira a conhecida Rua da Sede, cujo apelido dispensa explicações.
Mas chegamos à cidade no fim da tarde de um domingo, até então desligados de qual era o dia da semana até lembrarmos que o Museu de Belas Artes não abriria no dia seguinte. Aproveitamos as últimas horas de funcionamentos e rodeamos pelas salas compostas principalmente por obras renascentistas. Cenas bíblicas impunham-se em nosso roteiro contra os ponteiros do relógio. Assim mesmo, conseguimos passar por centenas dessas pinturas, entre elas a belíssima O massacre dos inocentes, de Léon Cogniet, que nos obriga a diminuir o ritmo e observar a força da imagem – o humano desespero de uma mãe protegendo seu filho na noite em que o Rei Herodes manda matar todos os bebês da vila de Belém, após saber sobre um recém-nascido que seria o novo rei do povo judeu. Na área reservada aos trabalhos impressionistas, me surpreendo com a leve presença de As canoas, de Gustave Caillebotte.
Mal sabíamos que apenas no dia seguinte é que descobriríamos o melhor de Rennes.
Segunda-feira!
Já eram mais de dez da manhã e pouco do comércio estava aberto. A maior cidade do estado só abre a partir das onze horas. A maioria das lojas, só após as duas da tarde. A semana começa praticamente deserta neste mundo que, agora sim, parece um conto de fadas – um paraíso! Aquelas pessoas simplesmente resolveram assumir a intolerância que todo o mundo tem pelas segundas de manhã. Quer acabar com a tristeza do domingo? Corte o trabalho na segunda de manhã! Quer acordar de bom humor na segunda? Simples: vá trabalhar só à tarde! E se não gosta nem um pouco, mas nem um pouquinho mesmo da segunda? Tudo bem! Faça como alguns outros: comece apenas na terça.
E tanto para quem trabalha na segunda, na terça ou no domingo, o descanso da sesta está presente. E a regra está clara e escrita na porta das lojas. Depois do almoço, só abrem depois das duas, o horário a partir do qual é possível ver as calçadas mais movimentadas. O ritmo é sem pressa, sem atropelos. O comércio, no entanto, toma conta de algumas praças, como a feira de frutas, legumes, tortas de maçã e geleias. Ou, diante de uma igreja, a venda de livros a céu aberto. Olhando para o alto, num dos cruzamentos, o fio elétrico é abraçado por dezenas de pares de tênis velhos: o capricho dá boas-vindas aos pequenos atrevimentos que trazem mais vida a qualquer cidade.
Combina com a felicidade com que a senhora Monique, da loja de chocolates belgas Leonidas, nos recebe de trás de seu balcão com chocolatinhos do tamanho de uma ou duas mordidas, dispostos ordenadamente em forma de largas pirâmides. Pergunta quais gostaríamos de levar: “Ao lait, noir, praliné? Um peut de tout? Oui!” O medo de encarar uma senhora do interior da França, de cabelos brancos e olhos claros, vai desaparecendo. A distância entre culturas e os limites de comunicação se estreitaram com dois chocolates dispostos para nossa prova. Perguntamos se, ao invés daqueles, poderíamos provar os brancos. Sem hesitar, ela concordou, substituindo os primeiros pelos segundos. No francês macarrônico, eu lhe disse:
– A senhora é muito simpática e gentil. Obrigado!
– Sim, sim. Merci! As pessoas sempre dizem isso para mim. E sabem por quê? Faz 42 anos que eu trabalho com duas coisas que gosto: o comércio e chocolates. Assim trabalho mais feliz e atendo bem as pessoas. E vocês também são muito simpáticos.
– E como a senhora resiste trabalhando com chocolates?
– Durante todos esses anos, como cerca de cinco a seis chocolates desses por dia. Todo dia. É o suficiente, nada mais do que isso.
E na rua, a calma continua. Nas vias onde passam carros, é raro encontrar um cruzamento onde mais de dois ou três se alinham aguardando sua vez. Pelas calçadas de pedrinhas e concreto ninguém parece valorizar nada além do essencial. Pergunto-me o que pode se tornar um motivo de estresse para os habitantes de Rennes. O excesso de tranquilidade, talvez. Mas até para isso existe saída em Rennes. Os bares rua da sede, o Parque do Thabor, os cinemas, os teatros… E própria estação ferroviária, onde a circulação – esta sim – não para.